A Justificação é Pela Fé ou Pelas Obras? Entenda a Aparente Contradição Entre Paulo e Tiago
Críticos da expressão “pela fé somente” frequentemente destacam que a Escritura menciona apenas uma vez se somos justificados somente pela fé — e esse texto aparentemente nega essa ideia: “Verificais que uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente” (Tiago 2:24).
Mas o que Tiago realmente quer dizer ao afirmar que somos justificados pelas obras?
Não vou defender aqui de forma exaustiva a doutrina da justificação somente pela fé [sola fide], mas ela é claramente ensinada, por exemplo, em Romanos 3:28: “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei.” Assim como Paulo ensina em Romanos 4:5, “[Deus] justifica o ímpio.” Tanto Abraão quanto Davi foram justificados pela fé, e não por obras (Romanos 4:1–8; Gálatas 3:6–9).
A salvação, como Paulo demonstra em outras passagens, é “pela graça” e “mediante a fé” (Efésios 2:8–9). As obras são excluídas como a base da salvação — do contrário, as pessoas poderiam se orgulhar de suas realizações. A salvação pela graça mediante a fé ressalta a verdade impressionante e confortadora de que a salvação é obra do Senhor, não nossa.
Mas Paulo Contradiz Tiago?
A Justificação pelas Obras em Tiago
Tiago 2:14–26 argumenta repetidamente que a fé sem obras não salva no Dia do Juízo. Aqueles que afirmam ter fé, mas carecem de boas obras, não são salvos por essa fé meramente declarada (Tiago 2:14). Tiago compara esse tipo de fé a “palavras de amor e consolo” ditas a alguém que está com frio e com fome. Tais palavras são vazias se não forem acompanhadas de ações concretas que alimentem e vistam a pessoa necessitada (Tiago 2:15–16). Da mesma forma, a fé sem obras é “morta” e “inútil” (Tiago 2:17, 20, 26).
Uma fé que é apenas intelectual, ou que afirma crer, mas não se manifesta em ações, não é melhor do que a “fé” dos demônios. Afinal, eles também reconhecem a verdade ortodoxa de que “Deus é um só” e tremem de medo (Tiago 2:19). Tiago destaca que Abraão foi “justificado pelas obras” ao oferecer Isaque (Tiago 2:21), e que Raabe, a prostituta, foi “justificada pelas obras” ao acolher os espias e protegê-los do perigo (Tiago 2:25).
Fé Intelectual Não Salva: A Relação Entre Fé e Obras na Bíblia
À primeira vista, pode parecer que Tiago rejeita a doutrina da justificação pela fé somente. No entanto, primeiras impressões não são suficientes quando lemos as Escrituras. Somos chamados a ler de forma profunda e canônica. Tiago não nega que a fé salva; ele rejeita a ideia de que um certo tipo de fé salva — uma fé que não produz obras. Em resumo, a fé que consiste apenas em um assentimento intelectual não é uma fé salvadora.
Mais uma vez, os demônios declararam que Jesus é “o Santo de Deus” (Marcos 1:24), mas a crença nessa verdade não os salvou. Mesmo sabendo quem Jesus era, eles O odiavam. A fé salvadora, portanto, é um ato de toda a pessoa. Ela envolve a vontade e as emoções, de modo que aqueles que creem em Jesus se entregam a Ele.
Não é o Fundamento
Vamos pensar de outra forma. A fé, sozinha, justifica, mas apenas o tipo de fé que inevitavelmente produz boas obras. Essas boas obras, porém, não são a base da justificação. De fato, elas não podem ser, pois um único pecado o torna transgressor da lei (Tiago 2:10–11). Boas obras não podem funcionar como o fundamento de nossa justificação porque Deus exige perfeição, e mesmo após a conversão, continuamos a pecar.
Tiago, inclusive, afirma exatamente isso logo após falar sobre a justificação por obras: “Todos tropeçamos em muitas coisas” (Tiago 3:2). A palavra “tropeçar” significa “pecar”, como mostra o texto paralelo em Tiago 2:10. Todos nós, sem exceção — incluindo Tiago (“todos nós”) — continuamos a pecar.
Ele está dizendo que pecamos apenas ocasionalmente? De forma alguma. Ele afirma que pecamos “em muitas coisas”. Não pecamos apenas em algumas áreas, mas em várias. Já que o pecado continua a marcar a vida dos crentes de maneiras notáveis, e uma vez que Deus exige perfeição, as obras não podem formar a base de nossa justificação.
O Fruto, Não a Raiz: Como Entender as Obras em Tiago
Como devemos entender, então, as obras que Tiago exige? Certamente, as boas obras são necessárias, pois sem elas não seremos justificados, mas já vimos que elas não são a base ou fundação necessária.
A melhor solução é dizer que as obras são o resultado e o fruto da fé. A verdadeira fé se expressa por meio das obras. O próprio Paulo ensina a mesma verdade, afirmando que o que realmente importa é “a fé que atua pelo amor” (Gálatas 5:6).
Esse conceito não é difícil de compreender. Se eu dissesse que o cômodo onde você lendo está prestes a explodir em um minuto, e você acreditasse em mim, desejasse viver e fosse fisicamente capaz de sair, você correria daí. A verdadeira fé levaria a obras! Sair do cômodo seria o resultado de sua fé. Por isso, é correto dizer, como os Reformadores disseram, que somos justificados somente pela fé, mas que a verdadeira fé nunca está sozinha. Eu sugeriria que é exatamente isso que Tiago está ensinando.
Não é como se nossas obras nos salvassem ou nos justificassem no sentido de nos qualificarem a entrar na presença de Deus — como se nossa virtude conquistasse o favor divino no último dia. Tiago ensina que existe uma relação orgânica entre a fé genuína e as obras. Se realmente confiamos em Cristo, essa confiança se manifesta em como vivemos. As obras são a evidência de nossa fé.
Verdades Complementares: Paulo e Tiago Não se Contradizem
Por que Paulo e Tiago soam tão diferentes? Por que, à primeira vista, parece que eles se contradizem? Precisamos lembrar que as cartas foram escritas para situações específicas enfrentadas por igrejas específicas. Paulo escreveu para igrejas onde as pessoas eram tentadas a confiar em suas obras para a salvação, enquanto Tiago escreveu para aqueles inclinados a pensar que um mero assentimento intelectual poderia salvá-los.
Paulo combate o legalismo, enquanto Tiago corrige o antinomianismo.
Claro, Paulo também rejeitava o antinomianismo: “²¹ eu vos declaro, como já, outrora, vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais coisas praticam” (Gálatas 5:21). Ele também acreditava que boas obras eram necessárias para a vida eterna, mas tanto Paulo quanto Tiago ensinavam que tais obras são o fruto da fé salvadora, e não a raiz.
Na beleza e na completude da Palavra de Deus, Paulo e Tiago ensinam verdades complementares, não contraditórias.
Recomendações ReforLit de leitura sobre o tema:
- Somente Pela Fé – Thomas R. Schreiner
- Paulo x Tiago: Como conciliar suas (aparentes) diferenças no debate sobre fé e obras – Chris Bruno
- Salvos Pela Graça – Anthony Hoekema
- Calvinismo: As Antigas Doutrinas da Graça – Paulo Anglada
- O Comentário de Romanos – Thomas R. Schreiner
- O Comentário de Tiago – Douglas J. Moo