Calvinismo para uma era secular

Calvinismo para uma era secular é uma excelente obra de aplicação do pensamento de Abraham Kuyper, plasmado em suas famosas Palestras Stone (1889), para os nossos dias. Foi publicado originalmente nos Estados Unidos pela InterVarsity Press, sob o título Calvinism for a Secular Age, em 2022.

Trata-se de uma obra colaborativa, em que cada capítulo representa a contribuição de um autor diferente, os quais apresentaremos brevemente ao longo desta resenha. Os editores da obra, Jessica R. Joustra (PhD, Fuller Theological Seminary e Universidade Livre de Amsterdã) e Robert J. Joustra (PhD, Universidade de Bath), por sua vez, são competentes pesquisadores ambientados na perspectiva neocalvinista.

Com um prefácio de James D. Bratt, professor emérito de história na Calvin University, a obra é dividida em 8 capítulos, mais uma introdução e uma conclusão escritos pelos seus editores. Os capítulos seguem uma estrutura padrão de três partes: “O que Kuyper disse?”, “O que os kuyperianos fizeram?”, e “O que devemos fazer?”, nas quais os autores promovem uma análise de cada uma das palestras proferidas por Kuyper, abordam o que a tradição kuyperiana desenvolveu a partir desses conceitos, e trazem aplicações desses conceitos para os nossos dias, respectivamente.

O primeiro capítulo, denominado “Kuyper e sistemas de vida”, foi escrito por Richard J. Mouw (PhD, University of Chicago), autor de vários livros e ensaios sobre o pensamento de Abraham Kuyper. Neste capítulo o autor destaca o que era fundamental para Kuyper, a saber, o entendimento da autoridade suprema do Deus da Bíblia sobre todas as coisas, que redunda em um sistema de vida distinto de todas as outras cosmovisões. Ainda nesse capítulo, o autor toca no delicado assunto das observações negativas que Kuyper faz a respeito da cultura africana. Mouw aborda ainda a influência que sua concepção de “biocosmovisão” teve no contexto americano, ainda que tardia, destacando esse legado por meio da menção de autores e obras que trilharam o caminho aberto por Kuyper. Para ele, os cristãos de hoje precisam reconhecer as preocupações centrais do pensamento da cosmovisão sem que precisem aceitar todas as questões teológicas e filosóficas que Kuyper explora em sua primeira palestra.

O capítulo 2, escrito por James Eglinton (PhD, Universidade de Edimburgo), aborda a relação entre Kuyper e a religião. Eglinton é professor sênior de teologia reformada na Universidade de Edimburgo, possuindo vários escritos que abordam o neocalvinismo holandês. O autor mostra de maneira muito didática como Kuyper pretendia redimir a ideia de religião ao apresentar o melhor do calvinismo como a religião da vida vivida na presença de Deus (coram Deo), apesar de viverem numa época em que a religião se encontrava desacreditada, principalmente na Europa. Eglinton aduz que a influência de Kuyper nesse aspecto é bastante significativa, entretanto muitos protestantes hoje vivem um tipo estranhamente irreligioso de cristianismo, não expressando sua fé em todas as áreas de suas vidas. Assim, o autor demonstra com propriedade que essa é uma razão pela qual o ensino de Kuyper ainda é tão importante.

“Kuyper e a política” é o título do terceiro capítulo, escrito por Jonathan Chaplin (PhD, Universidade de Londres), um membro do corpo docente de divindade da Universidade de Cambridge, e autor de muitos livros, artigos e edições especiais de periódicos. Neste ensaio, o autor aborda a questão da soberania das esferas, tendo o cuidado de fazer as distinções necessárias para um melhor entendimento desse conceito. Segundo ele, tal conceito abrange duas ideias distintas, mas relacionadas: “a liberdade geral das instituições sociais de um controle estatal excessivo e a liberdade específica dessas instituições para adotar e seguir uma visão religiosa, levando a uma condição de pluralismo religioso” (p. 66). O autor destaca algumas das várias organizações que surgiram a partir das concepções kuyperianas de teologia pública, para ao final chamar a atenção das implicações de sua doutrina política para os nossos dias. Abordando o contexto americano, Chaplin arremata que a rica abordagem de Kuyper nos ensina que o cristão de mentalidade independente não pode se identificar simplesmente como conservador ou liberal nos sentidos mais superficiais, o que de fato é conclusão muito perspicaz.

O capítulo 4 é escrito por Deborah B. Haarsma (PhD, Massachusetts Institute of Technology) e trata da relação de Kuyper com a ciência. A autora é presidente da BioLogos e uma experiente pesquisadora de astronomia. Esse capítulo aborda de maneira consistente a preleção de Kuyper acerca do tema, destacando o apelo aos cristãos para se envolverem com a descoberta das obras de Cristo na criação, e a graça comum que concede que mesmo aqueles que não conhecem a Cristo também possam contribuir nessa área, apesar dos pressupostos equivocados. Entretanto, na seção de aplicações mais diretas, a autora coloca seus próprios pressupostos em evidência ao defender o evoteísmo (ou criação evolutiva, como ela chama) e criticar a oposição de Kuyper à evolução de maneira geral. Segundo a autora, a rejeição deveria se dar apenas ao evolucionismo ateísta, até porque, entre outras razões, segundo ela, “as descobertas científicas para a história e os processos evolutivos são fortes e crescentes” (p. 103). Honestamente, tal afirmação parece ignorar que o debate entre cientistas de linha evolucionista e os defensores da teoria do Design Inteligente, por exemplo, está longe de acabar e que o movimento desses últimos também parece crescer bastante1BARONE, Isabelle. “Há uma onda que está varrendo o planeta, e ela se chama Design Inteligente”, diz cientista. Gazeta do Povo, 27 fev. 2020. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/ha-uma-onda-que-esta-varrendo-o-planeta-e-ela-se-chama-design-inteligente-diz-cientista/ Acesso em: 28 set. 2023..

O quinto capítulo é denominado de “Kuyper e a arte”, e foi escrito por Adrienne Dengerink Chaplin (PhD, Universidade Livre de Amsterdã), que é pesquisadora visitante do King’s College de Londres e pesquisadora associada do Margaret Beaufort Institute em Cambridge. Essa autora faz um apanhado geral das respostas dadas por Kuyper às críticas que o calvinismo recebeu quanto ao desenvolvimento das artes. Muito interessante é o seu levantamento do legado kuyperiano nessa área, destacando a figura de Hans Rookmaaker, que aplicou o pensamento de Kuyper e Dooyweerd às artes. Ainda neste capítulo, a autora faz algumas críticas a algumas posições de Kuyper (como sua atribuição do sucesso da pintura holandesa na Idade de Ouro à doutrina da eleição de Calvino), entretanto, conclui que alguns princípios calvinistas que ele articulou podem sim ser aplicados na esfera da arte e na estética.

O capítulo 6 é assinado por Bruce Riley Ashford (PhD, Southeastern Baptist Theological Seminary), que trata sobre a última palestra proferida por Kuyper, abordando o seu pensamento e o futuro. Além de professor, palestrante, colunista, redator de discursos e consultor político, o autor é membro sênior do Kirby Laing Center of Public Theology, e autor de vários livros. O ponto de relevo nesse capítulo é o capturar do equilíbrio kuyperiano ao apelar que os cristãos calvinistas se voltem à ação, mas que, coerentes com sua teologia, confiem no poder do Espírito de Deus, que sopra onde quer. Nesse contexto, argumenta o autor a partir da palestra de Kuyper, apesar dos desafios da modernidade (e da pós-modernidade), os cristãos precisam posicionar sua “harpa eólica calvinista” para que esteja pronta para receber o poder de Deus quando ele o conceder.

O capítulo 7 trata-se de um ensaio que aborda especificamente a relação de Kuyper e a questão racial. Foi escrito por Vincent Bacote (PhD, Drew University), que é professor e diretor do Centro de Ética Cristã Aplicada do Wheaton College. Esse é o capítulo em que a análise parece mais cuidadosa, pois o autor transcreveu os trechos da primeira, terceira e sexta palestra em que Kuyper explicitamente expôs uma postura racista, para em seguida trazer suas considerações. Com muito equilíbrio e honestidade, Bacote apresenta as principais posturas críticas que foram levantadas contra Kuyper, para depois sugerir uma maneira de lidar com ele, entendendo que se trata de “um homem com pés de barro”, nem herói, nem vilão: “em vez de nos afastarmos da tradição por causa de imperfeições gritantes, olhamos para os aspectos positivos já presentes no neocalvinismo e ousamos imaginar uma versão melhor dessa fé e cosmovisão” (p. 153).

O último capítulo apresenta a interessantíssima questão das traduções do texto das Palestras Stone. Trata-se de um ensaio escrito por George Harinck (PhD, Universidade Livre de Amsterdã), que é professor de história na Universidade Livre de Amsterdã e professor e diretor do Instituto de Pesquisa do Neocalvinismo da Universidade Teológica de Kampen. Esse último capítulo trata de uma curiosa história da tradução das Palestras Stone para o inglês, e uma controvérsia envolvendo importantes personagens do Seminário de Princenton, como Geerhardus Vos, que fez o convite a Kuyper, e B. B. Warfield, que escreveu em uma nota em sua cópia do livro texto de Kuyper uma versão altamente implausível sobre a história dessa tradução, segundo o autor. Tal controvérsia não é solucionada por Harinck, mas sua pesquisa e narração desses fatos são muitíssimo estimulantes.

No tocante aos aspectos editoriais, ressaltamos que a obra parece ter contado com uma revisão cuidadosa (praticamente não foram encontrados erros de digitação) e possui uma diagramação muito bem-feita. A única ressalva (trata-se de uma questão de gosto pessoal) é que as notas são agrupadas no final do livro; por isso o leitor mais interessado no seu conteúdo terá um pouco mais de dificuldade para acessá-las do que se elas se encontrassem no rodapé. Ademais, a arte da capa, feita por Rafael Brum, é de muito bom gosto, com uma ilustração que remete a uma pintura impressionista, sendo muito superior à capa da edição original em inglês.

O objetivo dessa obra, conforme o editor Robert Joustra, “é pintar um retrato não de um santo, mas de um homem” (p. 30), que apesar de suas falhas (algumas são apresentadas de forma honesta e bastante explícita), tinha o grande interesse submeter toda a vida ao senhorio de Jesus Cristo. Creio que esse objetivo foi alcançado, visto que a análise e aplicação das Palestras Stone realizadas na obra são bastante elucidativas do pensamento desse servo de Deus do passado, mostrando que o que ele ensinou no final do século 19 ainda é relevante para os nossos dias. Apesar das aplicações nesse livro se voltarem primordialmente ao contexto norte-americano, o público brasileiro também pode se beneficiar delas, pois podem ser estendidas e adaptadas a quase todos os contextos.

De uma forma geral, todos os ensaios são escritos de uma maneira muito acessível, mesmo para aqueles que ainda não foram introduzidos ao neocalvinismo holandês. Entretanto, aqueles que já estão familiarizados com os conceitos do neocalvinismo e já leram a obra Calvinismo, de Abraham Kuyper, são os principais beneficiados com a leitura dessa coletânea de ensaios. Sendo assim, é uma obra altamente recomendável para os cristãos envolvidos com a academia teológica, que pesquisam sobre o neocalvinismo, mas também muito proveitosa para aqueles que não possuem esse treino teológico, porém desejam compreender melhor as implicações das ideias Abraham Kuyper, principalmente com uma perspectiva de aplicação dessas ideias para a vida presente.

Notas:

Outras Resenhas

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